Uma decisão de começar, o milagre do início e do começar, de que falava Hannah Arendt, que exige materializar-se, que impõe uma forma à vida e à matéria. Uma fundação teve lugar. Foi assim na Aveleda há 150 anos.
Absortos nas ondas do mar esquecemos o seu movimento incessante. De maneira inconsciente, e bem arcaica, desde sempre se procurou esquecer a mudança, o correr das coisas, o devir. Quanto mais se tornava sensível o desgaste do tempo, maior a necessidade de nos embriagarmos, escreveu Baudelaire, “para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos quebra as espáduas, vergando-vos para o chão”. Um inebriamento, uma ilusão qualquer, para suportar a alteração que arruína os corpos, que deslassa as relações, que vai erodindo os projectos e os planos. E vinda da natureza, a entropia universal que um dia acabará com o cosmos, vai fissurando os edifícios, tudo ameaçando com os vírus e as pragas, com o vegetal a entortar as estradas, a invadir tudo, ou as pedras a abrir, os metais a enferrujar. Ser um animal com memória, eis o problema. Os animais não veem a hora que passa. Percebemos bem os primeiros homens que procuraram parar esse movimento incessante, que da mudança extraíram o eterno, uma espécie de véu para não deixar ver a mudança. Parar é o impossível milagre dos humanos. No passageiro descobriram o duradoiro, tudo servia para sonhar. A pedra mais duradoura do que a carne fascinou desde sempre e serviu como metáfora para pensar o que perdura. Nas paredes de pedra das cavernas os caçadores do paleolítico pintavam imagens, onde as presas eram caçadas, caçavam eternamente, para sempre a fugir e para sempre a ser caçadas. Também os antigos egípcios no seu desejo de imortalidade se petrificavam, num delírio de permanecer.
Tudo se joga em deter o instante. Não por acaso, os teólogos para justificar a fatalidade do movimento a descreviam como “queda”. O modelo era a gravidade que arrasta todos os corpos para a terra, movimento obrigatório, com estatelamento no fim. Num movimento inverso teria de surgir a elevação para o eterno, uma espécie de antigravidade poética e mítica, que lá foi funcionando. Quanto mais falhava mais funcionava, até que se começa a acetar a entropia, a compreender que a Terra sobre a qual tudo caía, girava também ela em torno do Sol a 110 000 km/hora, e que este é arrastado e roda a velocidades enormes, arrastado pela via láctea. Disse Italo Svevo, “não é por a Terra girar que temos de ficar agoniados”. Mas ficaríamos agoniados, horrorizados mesmo, não fora o facto de termos sempre inventado formas de paragem: é isso mesmo o efeito da arte, que pode inventar o impossível, o eterno. É bem o caso da fotografia. Numa delas, caída no fundo de uma gaveta, o velho pai já desaparecido surge eternamente jovem. A fotografia que o faz jovem foi amarelecendo, desbotando, comida nos cantos. A fotografia também muda, mas muda de outros modos, parando ligeiramente, enlentecendo.
Ser Moderno implicou a descoberta da imensa fragilidade do “parar”, mas também a sua necessidade. Um jogo de stop and go. Mas o humano parte da aceitação da mudança, do escorrer da Physis e de tudo o que vai nela. Um dos pensadores do Ocidente, Heráclito afirmou há milénios que “tudo flui” (Panta rei), e que “não podemos banhar duas vezes no mesmo Rio”. Eis um começo de resposta, pois o “rio” é uma palavra onde pára o incessante fluir das águas, tal como “fluir” é uma palavra que não flui. É pela palavra que começamos a parar as coisas, que nos aproximamos de algo que se escapa, e ao mesmo tempo passa pela palavra. Um pouco como a fotografia, que surge como uma mudança no seio do devir geral, o acrescenta e ao mesmo tempo o altera, introduzindo uma demora.
Tudo se joga em aceitar o movimento, a mudança absoluta, mas é preciso saber navegar. Fernando Pessoa escreve que “navegar é preciso, viver não é preciso”, fazendo seu um ditado antigo, dos marinheiros cartagineses. O que significa que só é uma vida plena a que aceita a mudança e lhe sabe responder. É certo que para além da idealidade do eterno, ou da poética das palavras e das imagens, se foram construindo abrigos, muros e muralhas, que procuram deixar de fora, o que ameaça na sua indiferença absoluta ao humano, e que ameaça até os muros. Mas melhor é aceitar aquilo que os antigos chamavam o clinamen, a inclinação infinita que tudo rege, aprendendo a declinar o movimento. Se a queda é infinita, dizia Nietzsche, pode então ser habitada, desenhando nela arabescos, dando as mãos, diferindo o estatelar-se. A declinação é como desviar um curso de água, sem domar a sua força, mas intervindo na sua direção, na velocidade, escavando-lhe outros caminhos, distribuindo a sua energia até que tudo se funde nos meandros ocultos da terra. Neste aspecto, a frase de Pessoa diz algo de interessante, é preciso criar veículos de movimento, que aceitem o movimento, se arrisquem nele. Poderia chamar-se-lhes “barcos”, mas são formas de navegar o movimento, de surfar a vida, sem a ilusão de poder pará-la. Na viagem as madeiras começavam a partir-se, as velas a rasgar-se, fazendo-se os consertos em alto-mar. Toda a sabedoria está em saber aproveitar as diferenças, as lentidões relativas, as diferenças de ritmos.
É certo que em alguns momentos de felicidade, de êxtase, paramos repentinamente - sobre uma paisagem, um olhar, uma planície - e que essa paragem nos continua a alimentar, como qualquer coisa que interrompe, que resiste, uma rocha de felicidade no mar magno. Experiência intensa quando sucede, e nos acha impreparados, aparecendo subitamente. É possível fazer o mesmo conscientemente quando se funda algo de essencial. Subitamente uma visão torna-se clara, um sonho apodera-se da alma, e real e irreal confundem-se. É preciso subir para ver melhor, mas já se tinha subido inadvertidamente. Uma decisão de começar, o milagre do início e do começar, de que falava Hannah Arendt, que exige materializar-se, que impõe uma forma à vida e à matéria. Uma fundação teve lugar. Foi assim na Aveleda há 150 anos. Algo interrompe o movimento, em seu redor tudo reflui e recircula.
Do alto da visão, uma ideia surge, uma imagem ainda imprecisa, mas fatal, como todas as decisões sérias. Algo sólido, mas também frágil surge, exigindo cuidados infinitos. Trata-se de um veículo para a mudança, um veículo para navegar a terra, dar sentido ao vegetal, visar a diferença absoluta. Fundar algo, quando não se tem a ilusão da segurança dos fundamentos, significa jogar com as diferenças de velocidade, com o tempo, com a entropia para dar tempo ao tempo, para que o tempo possa dar outro tempo, o da Casa, a sua demora na terra, a sua insistência no tempo, o frutificar da decisão. A ideia inicial, impercetível, mais sonhado do que programada, não é apresentável, apresenta-se na decisão, na sua materialização. Só o sabe quem recebeu. Todo o fluir, o devir e as mudanças do mundo são como que atraídos, desgastam, avassalam; a própria coisa fundada está em movimento, assumindo em cada momento a resposta ao passar do tempo, aquilo que vem da História - as crises, as guerras, as leis, a economia. Não se trata de perigos, mas de acontecimentos que caiem como a chuva e o sol, as boas e as más épocas, os bons ou maus governos.
A única forma de ser fiel à ideia que secretamente dirigiu a fundação é o cuidar rigoroso, é continuar o trabalho, é saber mudar para não ser destruído pelo movimento das coisas. Sermos fiéis à casa e ao nome implica uma minuciosa ocupação, cada uma fazendo a sua parte. E, às vezes, implica parar para festejar em memória.